Houve um tempo em que o vento perdeu

Houve um tempo em que o vento perdeu
Aprendi muito com meu velho e saudoso pai, com o meu tio e padrinho, o velho Lindolfo e com meu companheiro de tantas jornadas no Mineirão, o tio João Coelho no nome, Galo no coração, sobre aqueles tempos

Um locutor esportivo da velha guarda todas as vezes que ia dizer tempo e placar enchia o peito, soltava seu vozeirão e, nas ondas do rádio, ressoava a sua indefectível frase: “o tempo que o tempo tem”. O tempo não para. E o mundo gira, o vento sopra, a vida muda e às vezes até capota.

Durante muito tempo o atleticano acostumou-se buscar como referência de tempos mais românticos e lúdicos os tempos do velho Kafunga, o mais emblemático goleiro da história do Glorioso.

Aprendi muito com meu velho e saudoso pai, com o meu tio e padrinho, o velho Lindolfo e com meu companheiro de tantas jornadas no Mineirão, o tio João Coelho no nome, Galo no coração, sobre aqueles tempos que o mitológico Olavo Leite Bastos emoldurava com suas histórias, sua verve e suas opiniões.

Aprendi também com o Campeão do Gelo Karango, com o visceral atacante Toninho Catimba e com o eterno e mítico massagista Gregório, todos meus vizinhos durante a minha infância e parte da adolescência.

E não faltou inspiração nos exemplos e nas histórias dos mitológicos atleticanos Lambreta, Sempre, Vitor Bastos, Raimundo Suzano, Orlando Mello, Dionísio, Zé das Camisas, Barbatana, Walmir Pereira, Adelchi Ziller, Irineu Fernandes, Capitão Estrela e Júlio, o mais amigo. Conheci todos pessoalmente.

Aqueles tempos em que a paixão pelo Galo mais famoso e mais querido do mundo foi cozida na chuva e no sol, na alegria e na tristeza, a ferro e a fogo.

Aqueles tempos descritos com maestria e poesia nas colunas e nos artigos de Jair Silva, Xico Antunes e Roberto Drumonnd e nas charges de G. O. Simões, Mangabeira, Son Salvador e Aroeira. Aqueles tempos em que as lavadeiras do Atlético depois de lavarem as camisas pretas e brancas as penduravam nos varais do velho Estádio Antônio Carlos.

E foi ali, debaixo de chuva, que o poeta da palavra testemunhou uma cena antológica e a descreveu com extrema felicidade, talento e proficiência: “se durante uma tempestade houver uma camisa preta e branca pendurada em um varal, o atleticano torce contra o vento”. E não é que houve tempo em que o vento perdeu?

Charles Darwin foi um dos pesquisadores mais influentes da história da ciência. Foi ele quem levantou importantes pontos sobre como as espécies mudaram ao longo dos tempos. O seu livro Origem das espécies por meio da seleção natural é, sem dúvidas, uma das obras mais relevantes de todos os tempos.

A seleção natural é o mecanismo, segundo Darwin, responsável pela evolução. De acordo com o pesquisador, as espécies vivem uma luta constante pela sobrevivência, e é nesse contexto que a seleção natural atua. Os vírus são o exemplo clássico da luta pela sobrevivência. Com o homem não é diferente,

Dizem que o homem é o produto do meio. E, claro, além das heranças genéticas, o que somos hoje é o produto de mutações impostas pela evolução natural das espécies (somos uma delas), conjugadas pelos avanços tecnológicos e demarcadas pelos processos civilizatórios.

Viver nunca foi fácil. Os desafios estão sempre presentes e nunca são leves. O sofrimento faz parte da vida, é inevitável e fundamental à evolução espiritual, mental e intelectual. É preciso sair da zona de conforto para crescer, avançar e superar as agruras da vida. E o futebol sempre teve um papel particular e especial nisso tudo.

Houve um tempo em que o futebol cumpria um papel catártico extremamente importante. Em um contexto de competição e rivalidade, o torcedor, por meio do seu time, se vingava dos problemas e dos eventuais desafetos do dia a dia.

Hoje isso não é mais possível. O ódio, a intolerância e o extremismo chegaram a tal nível que vem tornando a catarse peça de ficção.

E um clube em particular soube como nenhum outro estabelecer com o seu torcedor uma identificação tão forte e tão singular, como o Atlético.

O sentimento de pertencimento, uma via de mão dupla, estabeleceu-se, segundo aqueles que nele mergulharam e por ele foram tomados, de forma definitiva e eterna.

Vicente Mota eternizou este sentimento no hino de sua autoria, no qual contou momentos épicos daqueles tempos e cantou “NÓS SOMOS do Clube Atlético Mineiro”, “JOGAMOS com muita raça e amor”, “VIBRAMOS com alegria nas vitórias”, “NÓS SOMOS campeões dos campeões, NÓS SOMOS campeões do Gelo”, “SOMOS orgulho do esporte nacional”, “Vencer, vencer, vencer, este é o NOSSO ideal”, “HONRAMOS o nome de Minas no cenário esportivo mundial”, “Clube Atlético Mineiro, UMA VEZ ATÉ MORRER”.

E o que significam para o torcedor de hoje aqueles tempos em que um Galo de briga carijó vencia todas as suas lutas nas rinhas de BH, a ponto de transformar-se em mascote natural do time do time do povo das alterosas, desenhado por Mangabeira e imortalizado por Zé do Monte que passou a entrar em campo carregando um Galo imponente e com sangue nos olhos?

Não à toa, Atlético e Galo são hoje uma só entidade. E, não sem razão, todas as vezes em que amarrou as chuteiras dos jogadores atleticanos com as suas próprias veias, a Massa virou e venceu jogos que pareciam impossíveis de ganhar. Pois ganhou e até o tempo perdeu.

Quando se pergunta a qualquer jogador ou treinador qual torcida mais o impressionou e contra a qual não gostava de jogar a resposta é uma só: a do Clube Atlético Mineiro.

Milton Neves, jornalista e cronista esportivo mineiro, natural de Muzambinho e radicado em São Paulo há anos, torcedor raiz do Santos, não passou imune e confessa que a maior emoção que teve em sua vida foi sentida quando, diante da Massa em um Mineirão superlotado,’ recebeu o Galo de Prata, uma homenagem a quem se rendia ao Glorioso e à torcida mais Argentina do Brasil, assim definida por ele.

Estive com Milton Neves no Marrocos e testemunhei sua paixão supletiva pelo Galo e o seu sofrimento após a derrota para o Raja que deixou o Atlético fora da disputa pelo título mundial.

A atleticanidade é assim: avassaladora, incontrolável, apoteótica e epopeica. Muitos a conhecem e por ela são engolidos desde a primeira infância.

Outros se deparam com ela na adolescência ou já adultos e não conseguem explicá-la, só senti-la e curti-la. Duvidam? Perguntem a Dadá Maravilha, a Marques, o Xodó da Massa, a Dom Diego Tardelli, ao gaúcho Paulo Roberto Prestes, a Victor, a Réver, a Léo Silva, a Jorge Valença, a Leandro Donizete ou a Bernard. Ou, então, busquem conhecer as histórias do saudoso capitão de 71 Oldair Barchi ou a do velho e mítico Kafa ou ainda a do inesquecível Cincunegui, o Deus da Raça, ídolos de outros tempos.

Uma discussão está tomando conta das redes sociais e, segundo reza a lenda, também dos interiores do clube: será que a torcida que está frequentando a Arena é mesmo diferente daquela de outros tempos? Evolução ou involução? Sinal dos tempos? O time e o momento atuais do Atlético não empolgam? Torcida modinha, gerada nas convulsivas redes sociais dos tempos modernos?

Elitização e preços dos ingressos caros para o povão são apontados como a causa maior da mudança de perfil do torcedor alvinegro que está indo a campo. SAF e a perspectiva de de um dono ou de donos possuírem o clube certamente quebra o encanto de muitos.

Particularmente, e já escrevi sobre isso, o que vi e senti na Arena em relação ao torcedor presente e ao seu envolvimento com o jogo, me assustou. Realmente há algo de diferente no reino alvinegro.

O momento atual do Glorioso, não apenas de um futebol irregular e muito ruim dentro de campo, mas de mudança radical de seu modelo societário, rompe definitivamente com a sua história e pode afetar drástica e irremediavelmente essa relação ímpar entre clube e torcida, vez que não há como nutrir um sentimento de pertencimento e de identificação com algo que tem dono e passa a se mover sob a ótica de interesses societários.

Ou seja, o advento das SAF’s é uma novidade no futebol brasileiro que, em princípio, confronta perigosamente o espectro cultural da torcida tupiniquim. E a Massa atleticana, moldada da forma que foi, se os donos da nova organização, desprezarem a importância da história, da tradição e dos elementos solidificados desde outros tempos, poderá ter o seu perfil radicalmente modificado.

É que o Clube Atlético Mineiro que conhecemos e com o qual nos identificamos poderá ser apenas história de outros tempos. Nesse cenário, que história dos dias de hoje os pais passarão para os seus filhos? A quem interessará e emocionará a história da SAF?

Se o Atlético é hoje o gigante que é no futebol brasileiro é graças ao trinômio clube/time/torcida. Sem qualquer um deles o Atlético não seria o que é.

Quem tem que continuar brilhando, conquistando títulos, protagonista e hegemônico é o Clube Atlético Mineiro e não nenhuma SAF, nenhuma empresa. Só assim, a Massa voltará a derrotar o vento.

Fotos: Pedro Souza/Atlético
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Max Pereira

Atleticano e humanista. Um povocador nato. Engenheiro e Auditor Fiscal aposentado. Escritor nas horas vagas.